A felicidade como um direito

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O direito à felicidade é um tema controverso do ponto de vista teórico, dogmático e jurisprudencial. O debate em torno da felicidade questiona, antes de mais, se se trata de um direito humano ou de um direito fundamental e, depois, se é a felicidade em si que é o direito, ou se é a sua procura que deve ser salvaguardada universalmente (Barth, 2022). Adicionalmente, a controvérsia aparece associada à própria conceção de felicidade e ao seu significado diverso entre as diferentes culturas. 

Há ainda quem discuta os riscos da felicidade entendida como o derradeiro horizonte do projeto de vida comum, nomeadamente se enquadrado pela Constituição Legislativa dos respetivos países. Mesmo os que consideram a felicidade um estandarte incontornável no âmbito dos direitos universais, e um dever do constitucionalismo, considerando que os indicadores de felicidade devem nortear as decisões públicas, colocam a questão do potencial paternalismo e do risco antidemocrático da utilização da felicidade para a inibição dos direitos e constrangimento da autonomia e da vontade dos cidadãos (Leal, 2017). Sempre que os líderes políticos usam o Estado para definir pautas de felicidade, baseadas nos seus valores morais, esse risco parece estar, pelo menos,potencialmente presente. 

O reconhecimento da Felicidade enquanto direito fundamental (ou busca da felicidade) levou à sua classificação como direito cultural e multidimensional, abrangendo as dimensões de liberdade, igualdade e fraternidade (ideais da revolução Francesa), bem como seu papel integrador no direito ao desenvolvimento.

A felicidade tornou-se um ideal no Iluminismo e influenciou documentos como a própria Declaração da Independência dos EUA e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. No entanto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 não a menciona explicitamente, embora alguns dos seus artigos, como o 25º, possam estar indiretamente relacionados com ela. 

Historicamente, a doutrina filosófica foi quase coincidente com a doutrina da felicidade. Epicurianos e Hedonistas, bem como filósofos clássicos defensores do Eudemonismo, como Aristóteles, aprofundaram esta visão da felicidade na sua relação com a vida individual e coletiva. Na economia, o movimento utilitarista defendeu que o objetivo das decisões públicas deve ser o de maximizar a felicidade para o maior número de pessoas, ligando assim a felicidade com os direitos fundamentais. 

Aceitando a existência de múltiplos paradigmas, o domínio da psicologia, em particular os estudos da psicologia positiva – subárea científica focada na compreensão da experiência subjetiva da felicidade – tem nestes últimos anos procurado compreender melhor a felicidade e chegar a algum consenso. Desde a própria definição concetual e das suas implicações individuais e coletivas, estimulando assim diálogos epistemológicos, fundamentados no humanismo, utilitarismo, positivismo, pragmatismo, determinismo social, e em posições empiristas, filosóficas, fenomenológicas, relativistas e existenciais.

A diferenciação entre as formas filosóficas hedónicas e eudemónicas de encarar a felicidade deu lugar a distinções importantes entre o bem-estar subjetivo e a satisfação com a vida (Marujo, 2021). Na perspetiva hedónica, muitas das equipas de investigação que se dedicam à reflexão sobre o bem-estar subjetivo estudam a felicidade como um estado emocional (satisfação com a vida) que assume formas diversas consoante os indivíduos. Por outro lado, as equipas de investigação que se dedicam com vigor à dimensão eudemónica (também designada por florescimento humano ou funcionamento humano ótimo), centram-se em noções inter-psíquicas de felicidade que incluem as dimensões virtuosas, relacionais e de realização do potencial, associadas a vidas com propósito. Assim, a felicidade eudemónica é definida como a combinação de autonomia, relações sociais, significado e crescimento pessoal, tecendo-se a partir deste referencial conceções de felicidade, como por exemplo. a de cidadania comprometida com a vida política (Marujo, 2021). Submetendo-se a felicidade a testes científicos, tem sido possível conhecer aspetos do seu carácter universal, ainda que respeitando especificidades culturais, históricas e individuais.

A amplitude, diversidade e universalidade da investigação e do debate sobre a felicidade enquanto direito humano e direito fundamental oferece provas convincentes do valor social e do impacto dos estudos e dos diálogos epistemológicos, bem como da influência nas decisões de líderes e governantes (Marujo, 2021), de tal forma que a busca de felicidade começa a plasmar-se em várias constituições pelo mundo fora, sendo já considerado o tema do século XXI, à semelhança dos debates constitucionais ocorridos no século XX sobre a dignidade humana (Leal, 2017). Uma vez forjada nas constituições, explicita ou implicitamente, a felicidade adquire um carácter normativo – e não apenas de ideal político ineficaz – tendo, a esse propósito, o direito à busca da felicidade sido confrontado em tribunais de vários países.

Esta discussão sobre a felicidade como direito fundamental tem levado a mudanças constitucionais e políticas. Um exemplo: O Butão adotou o “Felicidade Interna Bruta” como métrica de prosperidade em 1970. No plano normativo internacional, a ONU, através da Resolução 65/319, de 2011 e da Resolução n.º 66/281, de 28 de junho de 2012, identificou a felicidade como “um objetivo humano fundamental”, enquanto “objetivo e aspiração universal”, estimulando nos seus Estados Membros o empenho na concretização deste desígnio através de políticas públicas. 

Em 20 de março de 2012, a ONU adotou a resolução da criação do Dia Internacional da Felicidade. Na página oficial do Dia Internacional da Felicidade, HappinessDay.org, chega-se mais longe ao declarar a felicidade como um “direito humano universal”. Na Europa, vários países passaram a medir a felicidade como parte do seu progresso social; o exemplo da ONU foi seguido pelo Comité Económico e Social Europeu, que incentivou a debates sobre a felicidade como indicador de qualidade de vida, reforçando a ideia de que o crescimento económico deve considerar o bem-estar.

A felicidade como direito humano enfrenta desafios teóricos e metodológicos. Enquanto a psicologia positiva tende a considerá-la um direito básico, o debate é influenciado por diferentes perspetivas éticas e políticas. Ainda que a maioria dos investigadores assuma um tom de neutralidade política, ela é incontornável. Os relatos e as teorias mais populares da felicidade transmitem uma relatividade ética simplista que a representa como qualquer ocorrência em que o prazer supera a dor. Há ainda a referir que os estudos sobre determinantes económicos da felicidade são frequentemente enviesados por amostras em contextos socioeconômicos favoráveis.

Determinação clara dos traços do conceito e sua relevância nos direitos humanos.

A ONU, ao instituir o Dia Internacional da Felicidade, enfatizou a busca da felicidade como um direito humano básico. No entanto, a definição do conceito e o seu status como direito humano universal ainda são debatidos. O primeiro reconhecimento formal da “busca da felicidade” ocorreu na Declaração de Independência dos EUA, mas com interpretações diversas, incluindo a sua associação à riqueza material.

O conceito de direito amplo à felicidade foi entretanto diferenciado de “estado de bem-estar social” e de “mínimos existenciais” e desenvolvido enquanto integrante de várias dimensões: a) o direito à busca da felicidade (perspetiva liberal); b) o direito prestacional (perspetiva positiva, i.e., o Estado como entidade que viabiliza os interesses e desejos legítimos das pessoas); limitação de acesso a prazeres perversos (relação com o princípio da dignidade da pessoa humana); e felicidade como telos da decisão judicial (Leal, 2017). 

Na tentativa de entender o lugar do conceito de felicidade nos direitos humanos inalienáveis, importa ainda referir que vários autores defendem, através da doutrina do Direito Internacional, que este direito passou a fazer parte da terceira geração de direitos e liberdades fundamentais, os chamados “direitos de solidariedade”.

Desta forma, a efetivação deste direito exige políticas públicas que promovam bem-estar e qualidade de vida, assegurando acesso a direitos essenciais como saúde, educação, trabalho digno e meio ambiente equilibrado. Esta posição amplia o papel do Estado, que passa a ser responsável não apenas por garantir a liberdade de escolha dos indivíduos, mas também por criar condições sociais e económicas favoráveis à realização plena da felicidade.

Justiça Social e Direito à Felicidade 

A justiça social está diretamente ligada à concretização do direito à felicidade, uma vez que a desigualdade social e económica afeta significativamente o bem-estar dos indivíduos. A promoção de políticas públicas que reduzam disparidades de rendimentos, garantam equidade no acesso a serviços essenciais e fomentem a inclusão social são fundamentais para assegurar que o direito à felicidade seja acessível a todos.

Assim, a busca pela felicidade como um direito fundamental não pode ser dissociada do compromisso com a justiça social. A igualdade de oportunidades, a erradicação da pobreza e a proteção de grupos vulneráveis são pilares essenciais para a construção de sociedades mais justas e para a promoção de um ambiente propício ao florescimento humano.

Principais autores

A pesquisa sobre o direito à felicidade ainda é limitada, sendo mais comum no Brasil do que em Portugal, destacando-se Aline da Silva Freitas e Saul Tourinho Leal. Na europa salientam-se os importantes trabalhos do sociólogo holandês Ruut Veenhoven (1942-2024), nomeadamente acerca do papel do Estado na promoção da felicidade.

A Constituição da República Portuguesa não menciona explicitamente a felicidade, mas destaca o bem-estar e a qualidade de vida como objetivos do Estado. Portugal tem promovido estudos e formação na área da ciência da felicidade, procurando integrar esse conceito na formulação de políticas públicas.

Estudos de Caso e Políticas Globais

Diversos países têm implementado estratégias que priorizam o bem-estar dos cidadãos como forma de garantir o direito à felicidade. A Finlândia, por exemplo, investe fortemente na educação e na qualidade de vida, liderando rankings de felicidade. No Butão, como já foi mencionado, a Felicidade Interna Bruta orienta as políticas públicas. Estes modelos ilustram como diferentes abordagens podem promover uma sociedade mais equitativa e feliz.

Autoria:

Prof. Dra Helena Marujo

Paula Senra

Referências 

AGUIAR, M. P. (2023). Direito à felicidade como direito cultural multidimensional. 

DIAS, J. (2011). A felicidade e os direitos humanos. 

FREITAS, A. S. (2023). Endo-Direito Humano à Felicidade: por quais motivos e como agir para efetivar? 

LEAL, S. T. (2017). O Direito à Felicidade: História, Teoria, Positivação, Jurisdição. VEENHOVEN, R. (2005). Happiness in nations: Subjective appreciation of life in 56 nations 1946–1992.